A estabilidade no serviço público, tema caro a toda sociedade brasileira, ao menos assim deveria ser, é alvo atual da PEC 32/2020, do Governo Federal. Mas, por que esse tema é apontado como vilão do serviço público, quando na verdade é um sistema de garantias contras desmandos, instabilidades, pressões políticas e até mesmo um mecanismo de combate a corrupção?
Importante salientar, que em todas as constituições pátrias, o tema sempre esteve presente como garante da prestação de serviço público adequada e conforme independente do cenário em que se encontra.
De outro lado, a estabilidade, como dito popularmente, “não vem de graça”. Primeiro, necessário se faz ingressar na carreira pública por meio do concurso, previsto em nossa Constituição de 1988, artigo 37, II, que aduz “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.
Atualmente, após seleção por meio de concurso, há, ainda, a necessidade de outros três anos no chamado “estágio probatório”, que é o tempo em que o servidor comprovará sua capacidade para o exercício do cargo, sob pena de perda, no caso de não atender os requisitos estabelecidos para àquela função pública.
Trata-se da forma mais justa de acesso ao serviço público, atento ao princípio da liberdade, dado que não condiciona a vaga no serviço público ao famoso “cabresto”; não permite que seja transformado em mercadoria para compra de votos em troca da “promessa de emprego”; não obriga o servidor público as famosas “rachadinhas”, como se vê hodiernamente, onde o “servidor” se vê obrigado a devolver parte de seu salário àquele que o empregou.
Pode se dizer, ainda, que é a forma mais justa de acesso, tendo em vista que privilegia o mérito daquele que se preparou, investiu e dedicou seu tempo para servir. Não depende de “padrinhos políticos”; não depende do famoso “QI”, ou seja, quem indica; permite que eventuais falcatruas com dinheiro público sejam descortinadas não subjugando o servidor sobe ameaça de perda do emprego ou redução salarial.
Assim, denota-se que tal forma de acesso ao serviço público atende aos princípios da Administração Pública, quais sejam aqueles previstos no artigo 37 da constituição Federal: LEGALIDADE, IMPESSOALIDADE, MORALIDADE, PUBLICIDADE E EFICIÊNCIA.
Destaca-se, nesta forma atual de acesso aos cargos públicos, especialmente, a impessoalidade e a moralidade para que sejam acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos legais. Logo, impossibilita que os cargos venham a serem preenchidos por pessoas com vínculos pessoais com eventual “governo de plantão”, visto que as realizações governamentais “não são do agente político, mas sim da entidade pública”, de acordo com o Ministro Alexandre Moraes autor do livro Direito Constitucional.
A Proposta de Emenda à Constituição de nº 32/2020, apresentada a Câmara dos Deputados, propõe alterações na forma atual de acesso ao serviço público, diminuindo o alcance da estabilidade do servidor público ao restringi-la apenas, as “carreiras típicas de Estado”.
A proposta altera as disposições sobre os servidores públicos e organização administrativa, no artigo 41 da Constituição Federal atual, passando a ter a seguinte redação: “Adquire a estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício em cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, na forma da Lei.”
Verifica-se aí que a estabilidade seria alcançada após término de vínculo de experiência, equivalente ao estágio probatório atual, devendo permanecer outro ano em efetivo exercício para depois alcançar a estabilidade. Ocorre que, tal estabilidade só alcançaria os servidores de cargos típicos de estado. Mas o que vem a ser carreiras típicas de estado?
Tal conceito, ainda carente de definição legal, segundo a proposta do governo seria estabelecido conforme o artigo 39-A a ser acrescido na Constituição pátria com a seguinte redação: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico de pessoal que compreenderá: … IV- cargo típico de Estado…”.
Extrai-se da proposição acima, que os Entes, por meio de Lei, processo menos complexo que alteração constitucional, passaria a dispor sobre seu regime de pessoal, acabando com o chamado “regime único” dos servidores. Ou seja, uma gama enorme de carreiras e servidores deixariam de possuir o manto da estabilidade e passariam a conviver com a pessoalidade das decisões administrativas.
Não bastasse, ainda, o risco da ausência de garantia da estabilidade para atuação independente dos servidores, a proposta de emenda constitucional, em referência, prevê alteração no artigo 84, VI da Constituição Federal para possibilitar que a “extinção de cargos públicos efetivos” por meio de Decreto. Assim, bastaria um ato unilateral de vontade do gestor de plantão para de uma canetada extinguir cargos e carreiras públicas.
Interessante notar da leitura da “exposição de motivos” para a reforma administrativa, encaminhada à Câmara Legislativa Federal, subscrita pelo próprio ministro de estado da economia, Paulo Roberto Nunes Guedes, inicia-se com uma contradição “Apesar de contar com uma força de trabalho profissional e altamente qualificada…”. Ora se a mão-de-obra do estado é altamente qualificada e profissional, por óbvio, fruto da enorme concorrência que é o processo do concurso público e dos atrativos de carreiras, como a estabilidade, não seria o Estado incapaz de ofertar as condições condignas de aproveitamento dessa força de trabalho?
Empiricamente, constata-se que os serviços públicos são de extrema importância, ao tempo que os investimentos na prestação de serviço público são insuficientes.
Sabe-se que os investimentos públicos foram congelados por 20 anos em razão da chamada PEC do Teto dos gastos em 2016, no governo Michel Temer. Com isso, os investimentos vincularam-se ao crescimento do país o que limita consideravelmente a prestação de serviços públicos.
A malfadada estabilidade pública, como posta atualmente, por um discurso que de longa data vem sendo construído, não parece ser uma questão de privilégio. Antes de tudo é uma garantia de que o servidor público possa, no seu exercício funcional, agir de forma livre e consciente tendo como fim o bem do serviço público e de toda a sociedade.
Se, eventualmente, há servidores que não exercem de forma adequada o seu mister, há na própria legislação atual, artigo 41, parágrafo primeiro da Constituição Federal, previsão de perda do cargo, em virtude de sentença judicial, mediante processo administrativo e em razão de ineficiência através de avaliações de desempenho. Há tão somente, a exigência de processo próprio, denominado administrativo.
Conclui-se, portanto, que a estabilidade não impede que o mau servidor seja afastado do serviço público, desde que não haja omissão daqueles que têm atribuição para tanto.
Há, ainda, outra possibilidade de perda da função pública ou da demissão do servidor. Trata-se daquela prevista no artigo 169 da Constituição Federal que diz “ A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei” e caso essas despesas ultrapassem os limites de gastos, o Ente poderá ainda tomar medida drástica onde “ o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal.” (Art. 169, § 4º, CF).
Ou seja, a própria Constituição Federal, traz em seu bojo formas de demissão do serviço público, seja por incapacidade, insubordinação, improbidade e até mesmo para não “estourar” o teto com as despesas de pessoal. Devem aos gestores tomar as providências cabíveis.
O fim proposto com a estabilidade no serviço público, portanto, não é mera burocracia. Trata-se, antes de tudo, de garantir imunidade ao servidor para que não seja alvo de perseguições políticas, especialmente, em momentos de acirramento como se vê no país. Vejamos opinião do professor da Universidade Federal de Goiás e Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás, Fabrício Motta.
“A estabilidade é o instituto jurídico com vocação instrumental, concebido para garantir o desempenho impessoal do servidor público. Trata-se de meio imaginado para impedir que a influência política (notadamente política-partidária) comprometa o desempenho da missão de bem servir o público, por temor de qualquer tipo de represália ou consequência negativa”, reforça o conselheiro.
Sem dúvida, há que se melhorar a prestação do serviço público, mas tentar fazê-lo com um discurso de privilégios e desvalorização das carreiras, tornando o serviço público ou as carreiras sem atrativos, levará a um quadro com pouca qualificação e profissionalismo, diferente do quadro atual admitido pelo próprio titular da pasta da economia, bem como poderá levar a um aumento da corrupção diante de salários pouco atrativos e/ou insuficientes para garantir os direitos e garantias previstos na Carta Magna.
Sandra Alves é Diretora Jurídica do SINDSEMP, bacharel em Direito, especialista em Direito Público com ênfase em Gestão Pública.