A PEC 32/2020, a chamada reforma administrativa, se aprovada, transformará profundamente o serviço público como o conhecemos hoje, afetando os servidores atuais, os futuros e, claro, toda a sociedade. Para além de uma suposta necessidade de aperto de cintos (dos servidores e da sociedade) em que se baseia a reforma, quais as outras intenções do governo em propô-la? Apontaremos três motivações neste curto texto.
A primeira é o interesse do governo em ampliar os vínculos precários na administração pública como forma de burlar o concurso público, o que fica claro em dois pontos da PEC: em sua proposta de ampliar o uso de contratos temporários de forma irrestrita (Art. 39-A, §2) e de que funções de confiança e cargos em comissão, chamados de cargos de liderança e assessoramento, possam ser exercidos por não servidores (Art. 37, V). Com essas propostas, cargos de liderança e assessoramento, inclusive com atribuições técnicas, podem ser ocupados por apadrinhados políticos. Grandes empresas de consultoria também podem ter interesse em ocupar tais posições e já têm se movimentado para tentar garantir essa fatia do Estado. Só no Executivo federal, esses cargos somam mais de 90 mil. O uso irrestrito de vínculos temporários, por sua vez, pode abrir mais espaço para relações espúrias e a suposta economia em realizar um contrato temporário pode se diluir em um aumento da corrupção. Além disso, é importante lembrar que o Brasil é muito bem avaliado em comparações internacionais, com a maior qualidade de governança e de meritocracia no serviço civil da América Latina e Caribe e com um respeitado baixo uso de contratos temporários se comparado aos outros países de nossa região, o que diz muito sobre a robustez de nossa burocracia.
A segunda motivação é a instituição do princípio da subsidiariedade (Art. 37) nos princípios da administração pública, que torna o poder público complementar ao setor privado (e não o contrário) e se relaciona à previsão de ampliação de instrumentos de cooperação e compartilhamento de estrutura física e recursos humanos entre setor privado e setor público (Art. 37-A). Essas mudanças no texto constitucional, se aprovadas, abrirão espaço – e são aguardadas ainda mais duas etapas da reforma administrativa, que aprofundarão ainda mais as mudanças – para uma ampliação da privatização da política social, para instituição de esquemas de voucher (em que o governo subsidia parte da população para que obtenha serviços no setor privado), entre outros.
Por fim, a terceira mudança está na instituição de “superpoderes” para o presidente da República (Art. 84), permitindo-o extinguir por decreto até mesmo autarquias. É de se esperar que esta última medida não seja aprovada justamente por ferir atribuições constitucionais do Congresso. No entanto, para barrar as outras duas profundas transformações que o governo quer realizar, será preciso mobilização.
O serviço público cumpre um papel fundamental na garantia de direitos e na redução das desigualdades, como com o gasto em saúde e educação públicas ou com o Regime Geral da Previdência Social. Caso aprovada, a reforma alterará profundamente o serviço público sem nem ao menos levantar a questão da desigualdade, a não ser a partir de uma visão eivada de mitos sobre os servidores como um todo homogêneo e privilegiado.
Além disso, a reforma não se propõe a resolver o grande gargalo do serviço público: a falta de financiamento adequado para as políticas sociais, que sofrem com já seis anos de austeridade fiscal. Em vez disso, ela escolhe o caminho fácil de fazer do servidor público um espantalho.
Ana Luíza Matos de Oliveira é coordenadora-geral da Secretaria Executiva da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Frente Servir Brasil) e doutora em Desenvolvimento Econômico.