O governo editou Decreto 10.620/21, em que desmembra o RPPS (Regime Próprio de Previdência Social), dos servidores federais, que pode ser o primeiro passo para a privatização da Previdência do funcionalismo do Poder Executivo da União, além de aprofundar a visão de servidores de primeira e de segunda categorias.
Vladimir Nepomuceno*
O decreto foi apresentado como um passo na direção de regulamentar os parágrafos 20 e 22 do artigo 40 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional 103/19 (Reforma da Previdência). O decreto trata exclusivamente de servidores do Poder Executivo federal, mas pode servir de referência para outros poderes e para estados e municípios.
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O objetivo alegado seria caminhar na direção do que determina o parágrafo 20, do artigo 40, da Constituição federal, que veda “a existência de mais de um regime próprio de previdência social e de mais de um órgão ou entidade gestora desse regime em cada ente federativo, abrangidos todos os poderes, órgãos e entidades autárquicas e fundacionais, que serão responsáveis pelo seu financiamento, observados os critérios, os parâmetros e a natureza jurídica definidos na lei complementar de que trata o § 22” (do mesmo artigo).
Observa-se, entretanto, que o decreto, em seu artigo 3º, vai no sentido oposto ao texto constitucional ao propor dividir os servidores do Executivo federal, que têm um único regime próprio e uma única gestão, no Ministério da Economia, em 2 instituições gestoras diferentes, como se não fossem de um mesmo regime próprio. Os da Administração direta ficam sob a responsabilidade do órgão central do Sipec (Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal), ligado à Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, como é hoje.
Sob a responsabilidade do INSS
Os servidores de autarquias e fundações públicas, a grande maioria, passariam a ficar sob a responsabilidade do INSS. Cabe observar que o INSS, em suas competências, determinadas por norma legal, não consta a gestão de regime próprio de previdência. Ou seja, o INSS não tem competência legal para gerir o regime de Previdência dos servidores públicos.
Mas, afinal, qual seria o objetivo por trás desse decreto? Talvez a futura privatização de pelo menos parte do atual RPPS federal, com o retorno dos servidores de autarquias e fundações (os de “segunda categoria”) ao Regime Geral de Previdência Social, como era antes da promulgação da Constituição? Essa hipótese não pode ser descartada. Se alinharmos o que consta do Decreto 10.620/21 com a PEC 32/20, não fica difícil vislumbrar o que acabo de dizer acima.
Vejamos alguns pontos da PEC 32/20 que podem ter relação com o que estamos tratando. Em primeiro lugar, a PEC 32/20 propõe alteração do artigo 84 da Constituição Federal, que trata da competência privativa do presidente da República, como segue:
“Art. 84. …………………………………………………………………………………………
………………………………………………………………………………………………………
VI – quando não implicar aumento de despesa, dispor por meio de decreto sobre:
a) organização e funcionamento da administração pública federal;
b) extinção de:
cargos públicos efetivos vagos; e
cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão, cargos de liderança e assessoramento, funções de confiança e gratificações de caráter não permanente, ocupados ou vagos;
c) criação, fusão, transformação ou extinção de Ministérios e de órgãos diretamente subordinados ao Presidente da República, observado o disposto no art. 88;
d) extinção, transformação e fusão de entidades da administração pública autárquica e fundacional;
e) transformação de cargos públicos efetivos vagos, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de liderança e assessoramento, funções de confiança e gratificações de caráter não permanente vagos ou ocupados, desde que seja mantida a natureza dos vínculos de que trata o art. 39-A; e
f) alteração e reorganização de cargos públicos efetivos do Poder Executivo federal e suas atribuições, desde que não implique alteração ou supressão da estrutura da carreira ou alteração da remuneração, dos requisitos de ingresso no cargo ou da natureza do vínculo
………………………………………………………………………………………………………
XXV – prover os cargos públicos federais, na forma da lei;” (os grifos são meus)
Mais adiante, o artigo 9º da PEC 32/20, tratando da vinculação de futuros servidores à previdência social, diz:
“Art. 9º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão optar por vincular, por meio de lei complementar publicada no prazo de dois anos, contado da data de entrada em vigor desta Emenda à Constituição, os servidores que vierem a ser admitidos para cargo com vínculo por prazo indeterminado (todos os servidores, exceto os de cargos típicos de Estado), nos termos do inciso III do caput do art. 39-A, inclusive durante o vínculo de experiência, ao regime geral de previdência social, em caráter irretratável.”
Fim dos atuais regimes jurídicos de servidores
Cabe destacar, ainda, que a Reforma Administrativa prevê o fim dos atuais regimes jurídicos de servidores da União e de outros entes da Federação. Isso, para a imensa maioria dos servidores, que não os ocupantes dos futuros cargos típicos de Estado.
Esses, ficariam em condições próximas às atuais, até com um pouco mais de garantias e segurança, como, por exemplo, a maior dificuldade, em relação aos atuais servidores, de perderem cargos em caso de insuficiência de desempenho. Isso pode remeter, como dito acima, de volta à CLT o restante do funcionalismo, o que os levaria automaticamente para o Regime Geral de Previdência Social, a cargo do INSS.
Junta-se a tudo já dito aqui, o interesse dos neoliberais em tornar mais atrativa proposta de privatização da Previdência Social, uma vez que o INSS, pela proposta neoliberal — como bem lembra o Luis Fernando Silva, advogado, membro da AAJ (Associação Americana de Juristas), assessor jurídico de diversas entidades sindicais de servidores e especialista em direito previdenciário —, passaria a administrar também as contribuições ordinárias dos servidores públicos acima do teto previdenciário, que no caso da União estão hoje a cargo da Funpresp (Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público da União).
Sem alarde e sem a resistência de servidores
Outra questão a considerar sobre a edição desse decreto no atual momento seria, como já é feito em diversas outras áreas, para fazer aos poucos, sem alarde para não estimular resistência de servidores. A alternativa seria uma sinalização, em que o governo estaria começando a preservar os cargos que serão transformados em típicos de Estado.
Até porque, segundo o texto da Reforma Administrativa, seriam esses os únicos que continuariam estatutários, em Regime Próprio de Previdência, novo e apartado dos demais. Isso, além de terem mais proteção, garantias e segurança em relação aos demais trabalhadores do serviço público.
Uma coisa é certa, não podemos nos fixar à PEC 32/20, como se fosse “a” Reforma Administrativa, que, como já dito em outros artigos, está sendo feita por meio de diversos processos e proposições. Além, é claro, de estar casada com outras reformas.
(*) Assessor parlamentar. É servidor público federal aposentado. Artigo publicado originalmente em seu blog Notas do Vladimir