O Brasil precisa de uma segunda abolição, afirmaram nesta segunda-feira (18) os participantes da audiência pública voltada para debater as ações afirmativas em favor da população negra do Brasil. A Comissão de Direitos Humanos (CDH) discutiu “A abolição da escravatura e as ações afirmativas — Vinte de novembro pra quê?”, lembrando o Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro.
Para os representantes da luta pela igualdade racial, o país precisa avançar na implementação de políticas públicas e ações afirmativas capazes de reduzir a desigualdade e refletir nos índices sociais e econômicos da população negra. A data comemorativa, disseram os participantes, é uma importante ferramenta para estimular o debate, reforçar a luta e relembrar a história da escravização no Brasil, o último país das Américas a pôr fim a esse processo, em 1888.
A comemoração de 20 de novembro faz referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), líder do Quilombo de Palmares, e que lutou para preservar o modo de vida do povo africano. Popularmente chamado de Zumbi, ele foi o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, localizado no atual estado de Alagoas.
Ao relembrar o sofrimento e resistência da população negra durante os anos de escravização, a coordenadora da Articulação Nacional de Psicólogos Negros, Marcia Maria da Silva descreveu o processo de libertação como uma “abolição inconclusa”. Para ela, o fato ocorreu sem qualquer política de integração da população negra na sociedade de classe que emergia, o que levou a exclusão dos negros dos postos de visibilidade e de poder até os dias de hoje.
— De acordo com dados do Instituto Ethos, ao avaliar dados do perfil social e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil, a população negra soma apenas 4,7% no quadro executivo das empresas de maior destaque nacional. Sendo que as mulheres negras correspondem a 0,03%, ou seja, duas diretoras em 548 diretorias mapeadas. Nessa lógica, a bancada federal eleita para mandatos no período de 2019 a 2022 é composta por 71% de homens brancos. Senado Federal, 14% entre pardos e pretos, Câmara, [somente] 104 [deputados] entre pardos e negros. Nenhum ministro de Estado negro. Nenhum governador de estado negro. Nenhum ministro do Supremo Tribunal Federal negro. No entanto, o país simplesmente naturalizou o abismo que separa brancos de não brancos — afirmou.
Representante da Educafro, Artur Araújo afirmou que as celebrações durante o mês de novembro ganham maior repercussão porque a sociedade e instituições estão mais sensíveis ao tema e o diálogo sobre a necessidade de se fazer uma segunda abolição pode ser realizado com maior produtividade. Ele fez referência, por exemplo, a possibilidade de avanços na pauta legislativa com aprovação de medidas que busquem maior inclusão social. Entre os desafios a serem superados, citou as dificuldades de ascensão do negro no mercado de trabalho.
— Por mais que nós negros tenhamos estudo, avancemos em conquistas em grau de instrução, o máximo que se consegue é a inclusão. Mas ele não tem nenhum tipo de ascensão. A ascensão é muito mais difícil por mais que tenhamos graduação, mestrado e doutorado — reconheceu.
Igualdade de oportunidade
O senador Paulo Paim (PT-RS), autor do requerimento para a realização da audiência pública, lembrou que o Brasil viveu por mais de 400 anos em regime de escravidão colonial, o mais longo de que se tem notícia. Para ele, apesar de alguns reflexos positivos como o aumento do número de estudantes negros nas universidades públicas, o país ainda precisa avançar nas políticas que proporcionem igualdade de oportunidades para todos os brasileiros.
— Quanto tempo será ainda preciso aguardar para que pretos, pardos, brancos, LGBTs, idosos, mulheres, jovens, pessoas com deficiência, tenham a mesma oportunidade neste país? E claro, hoje estamos lembrando, principalmente, a população negra que foi escravizada por quase 400 anos. Todos nós fazemos parte de um único universo, somos todos irmãs e irmãos. A diversidade, em suas formas, precisa ser respeitada, independente da origem, da raça, sexo, cor, idade ou religião — afirmou.
Na avaliação do secretário executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, Carlos Moura, o dia 20 de novembro é um momento de celebração da vida, principalmente para aqueles com raízes africanas. Para ele, a data desperta ainda mais o desejo pelo aprendizado e estímulo à execução de ações contra o racismo, o preconceito e as desigualdades que vitimizam a comunidade negra. Carlos Moura reforçou a defesa pela maior inserção dos negros no mercado de trabalho em todos os patamares.
— A nossa inserção no mercado de trabalho tem que superar a inserção nas atividades cuja a rentabilidade salarial seja menor. Em atividades, cujo o exercício da profissão, não seja tão altaneiro como de tantas outras. Não quer dizer que isso não seja indigno, tudo é trabalho, e os nossos antepassados legaram a esse país o seu trabalho — alertou.
Violência
Assessor de Advocacy da Rede Justiça Criminal, Leonardo Santana afirmou que o processo de abolição no país deixou invisível a história das lutas negras, tanto no Brasil, como no mundo, e não provocou a inserção do negro no mercado de trabalho. Ele fez referência à pesquisa do Atlas da Violência, de 2017, a qual indicou que 75,5% das vítimas de homicídio foram indivíduos negros. Para ele, ao pautar o Pacote Anticrime e fazer avançar dispositivo com a previsão do excludente de ilicitude, os congressistas podem agravar ainda mais o que chamou de “racialização das mortes violentas no país”.
— O Pacote Anticrime [do governo], com a previsão da excludente de ilicitude, que amplia as hipóteses em que o agente do estado, por exemplo, pode matar alguém respondendo a uma demanda policial e aí, do novo governo eleito, de matar pessoas como baratas. Não são quaisquer pessoas. Essas pessoas não moram em condomínios fechados, essas pessoas estão confinadas em zonas periféricas, coletivamente desumanizadas, e que se tornam pessoas, entre aspas, matáveis. Então há um discurso encorajador para que os agentes de segurança pública promovam a necropolítica, mas ainda não há uma base jurídica que garanta segurança a esses agentes — argumentou.
O professor no Instituto Federal de Brasília (IFB) Humberto Santana Jr. denunciou que o crescimento do índice de mortes de negros no Brasil, mesmo em governos que mantinham diálogo e estabeleceram medidas de integração e representatividade, confirma que o Estado brasileiro colabora com o “genocídio antinegro”.
— O Estado brasileiro é genocida, ele mata carne preta todos os dias. Porque ele só funciona dessa forma. Se a gente olha o número de mortes no Brasil do povo negro, desde a escravidão para cá, são números de guerra. E a gente consegue ficar com isso tranquilamente, como? — declarou.
Perseguição religiosa
Coordenadora de Política, de Promoção e Proteção de Diversidade Religiosa da Subsecretaria de Políticas de Direitos Humanos e de Igualdade Racial do Distrito Federal, Ádna Santos, a Mãe Baiana, disse que as religiões de matriz africana têm passado por perseguição e violência. Por esta razão, defendeu o 20 de novembro como momento de conscientização e luta em todo o país.
— Nós gostaríamos que de fato, o 20 de novembro fosse uma ação afirmativa no Brasil e não somente em alguns estados. Nós temos visto que em alguns estados, os governos têm tirado esse direito de ter um feriado. Um 20 de novembro, onde se lembra, onde se fala da nossa resistência. Onde se fala da resistência do povo negro — ressaltou.
Ações no Senado
A consultora legislativa Roberta Viegas, que integra o Comitê do Programa Pró- Equidade, Gênero e Raça do Senado Federal, citou estudos que indicam o Brasil como mantenedor de uma estrutura de privilégios e desigualdade racial profunda, tanto institucional como estrutural. O 20 de novembro, para ela, é mais uma oportunidade de cobrar do Estado ações efetivas para combater esse racismo e citou ações desenvolvidas no âmbito do Senado. Entre as políticas no tocante a questão racial, Roberta destacou a adoção de cotas raciais para a realização de concurso no Senado e o Programa de assistência à mulher em situação de vulnerabilidade econômica em decorrência de violência contra a mulher.
— O objetivo é que no futuro, o Senado, possa espelhar melhor, pelo menos o corpo funcional, a realidade brasileira. E não ser tão branco e masculino como é atualmente — observou.
Fonte: Agência Senado